Fiquei durante algum tempo refletindo sobre os temas que se poderia escrever que envolviam o Tai Chi Chuan, assim como a maneira de interpretá-los. Na tentativa de buscar ajuda com aqueles que já haviam escrito livros, novamente deparei-me com as inúmeras ênfases e interpretações que cada autor faz sobre o tema. Podemos concordar em maior ou menor parte com cada um, assim como em nossas leituras, damos-nos conta da ênfase que colocamos em nossos estudos ou ensinamentos. Assim, resolvi fazer um "levantamento bibliográfico" (às vezes comentados) dos muitos temas que envolvem o Tai Chi Chuan. Então, iniciando nossos artigos, começaremos pela história da origem do Tai Chi Chuan.
Primeiras referências históricas
(do livro "O Livro Completo do Tai Chi Chuan", de Wong Kiew Kit)
"(...),o termo 'tai chi' significa 'o cosmo', tem sua origem no Yi Jing (I Ching), 'O Livro das Mutações', e está intimamente relacionado com a filosofia taoísta. Mas ninguém tem muita certeza a respeito da origem do Tai Chi Chuan, ainda que várias teorias tenham sido postuladas a este respeito. Alguns registros indicam que, durante a dinastia Tang (618d.C. - 906d.C.), um eremita chamado Xu Xuan Ping praticava uma arte conhecida como Os 37 Estilos do Tai Chi. Também foi chamada de Chanquan ou 'Punho Longo' e, mais tarde, de 'Rio Longo' em referência ao Yang - tzé Kiang, o rio mais extenso da China, porque sua execução deveria ser longa e contínua como um rio. Por volta da mesma época, no monte Wudang*, um sacerdote taoísta chamado Li Dao Zi praticava uma arte denominada Punho Longo Primordial, que era semelhante aos 37 Estilos do Tai Chi.(...)
A teoria mais popular sobre a origem do Tai Chi Chuan, todavia, cabe ao sacerdote taoísta Zhang San Feng,(...) que viveu por volta da dinastia Song, no século XIII. Depois de se formar no conhecido mosteiro Shaolim (...)Zhang San Feng continuou a praticar artes marciais e o desenvolvimento espiritual no Templo do Pico Purpúreo, no *monte Wudang, que é um dos mais importantes montes sagrados do taoísmo." Exemplo de Tai Chi Chuan Wudang:
(do livro "Clássicos do Tai Chi" de Waysun Liao)
"Por milhares de anos, o sistema político da China foi baseado em brutalidade e corrupção. As pessoas que se dedicavam à busca da verdade chamavam-se de taoístas ou "homens da montanha" e levavam uma vida semelhante à dos monges.(...)
Embora esses grupos não tivessem laços que os ligassem às autoridades políticas, seus estudos foram mesmo assim respeitados pelos governantes, primeiro em virtude dos conhecimentos acumulados, e depois como uma forma de religião.(...)
Cerca de 1700 anos atrás, o famoso médico chinês Hua-Tuo recomendava insistentemente os exercícios físicos e mentais como meios para a melhora da saúde. Acreditava que os seres humenos deviam exercitar-se imitando os movimentos de certos animais(...). Organizou assim as artes marciais populares num sistema marcial chamado de Jogos dos Cinco Animais, que foi a primeira arte marcial sistematizada na China.(...)
Por volta de 475 d.C., Ta-Mo (Bodhidarma) foi da Índia à China para disseminar sua doutrina religiosa e fixou residência no Templo de Shaolim, na região de Tang Fung, no norte da China.. Além da meditação e dos serviços de adoração religiosa, ele incluiu exercícios físicos na rotina diária do templo. Usou os Jogos do Cinco Animais para desenvover em seus seguidores uma disciplina mental e física equilibrada. A dedicação ao Budismo, associada à abundância de tempo reservado à prática, fez com que os Jogos do Cinco Animais se desenvolvessem e alcançassem, neste contexto, um alto grau de realização enquanto arte marcial.
Quando os seguidores de Ta-Mo espalharam-se pela China para pregar suas crenças religiosas, levaram consigo também seu conhecimento da artes marciais. O sistema desenvolvido pelos monges do Templo de Shaolim tornou-se conhecido como sistema de artes marciais de Shaolim. Dava ênfase não só ao desenvolvimento espiritual, como também ao fortalecimento do corpo e à resistência física. Foi assim que começou o desenvolvimento sistemático das artes marciais externas da China.
O aspecto de disciplina mental do sistema de Shaolim baseava-se pricipalmente na meditação budista. Pelos chineses que conheciam profundamente o Taoísmo e a sofisticada filosofia do Ying e Yang,ele era,e ainda é, considerada um simples sistema marcial físico.
*Em 1200 d.C., o monge taoísta Chang San Feng fundou um templo na montanha de Wudang apar a prática do taoísmo, em vista do desenvolvimento das potencialidades mais elevadas da vida humana. O mestre Chang propunha a harmonia do Ying e do Yang como meio para o progresso das capacidades mentais e físicas; ensinava também uma meditação natural e uma técnica de movimentos naturais do corpo gerados por uma energia interna que se desenvolvia depois de certo grau de realização da prática.
Como o sistema de Shaolim já estava espalhado pela China havia séculos, a idéia da adaptar a doutrina taoísta á vida cotidiana em vez de transformá-la numa forma de culto religioso foi prontamente aceita pela sociedade chinesa.(...)
Certos nomes de família passarm aser associados aos diversos estilos da Tai Chi que eram transmitidos de geração em geração, sempre de forma oral, de mestre a discípulo - como por ex., o estilo Chen, o estilo Yang e o estilo Wu. Muitos destes familiares ainda existem hoje.(...)
Cerca de 350 anos atrás, em 1644 d. C., os manchus invadiram o império chinês e fundaram a disnastia Ching. Embora a dinastia tenha sido fundada pela força e tivesse como único objetivo o bem dos governantes, os manchus logo foram atraídos pela cultura chinesa. Adotaram o estilo de vida chinês, reconstruíram uma ordem social mais ou menos pacífica e deram início a um governo corrupto que haveria de durar quase três séculos.
No começo da dinastia, os episódios de hostilidade e conflito entre os chineses e seus soberanos manchus eram violentos e muitas vezes brutais. Muito embora os manchus procurassem aprender a cultura chinesa e adaptar-se aos modos chineses, os chineses de nascença nunca deixaram de vê-los como bárbaros. O sentimento de responsabilidade do povo em relação à nação diminuiu; a resistência passiva e a recusa em cooperar com os 'estrangeiros' resultou na estagnação econômica do país.
Assim que os soberanos Ching ouviram falar da existência da sofisticada arte do Tai Chi, chamaram o mais famoso mestre da época, Yang Lu-chang (1799 -1872), fundador do estilo Yang ou sistema familiar Yang, para servir à corte imperial. Como não queria ensinar os manchus, mestre Yang modificou deliberadamente as formas meditativas do Tai Chi, convertendo-as numa espécie de exercício exterior de movimentos lentos e deixando completamente de lado a filosofia interior e a disciplina mental que constituem a chave do Tai Chi.
Mestre Yang sabia que, se a família real descobrisse o quanto não queria ensiná-los e quanto havia modificado as formas, o imperador, para vingar-se e aplacar sua própria cólera, mataria não só a ele, Yang, como a toda a sua família.. Como mestre yang chegou à conclusão de que não poderia confiar em ninguém, exceto nos próprios filhos, foi só a eles, e a ninguém mais, que ensinou a verdadeira arte do Tai Chi. Dessa maneira, evitou que qualquer outra pessoa se envolvesse na sua decisão pessoal de enganar os soberanos.
Daquela época em diante, os estilos familiares de Tai Chi tornaram-se menos públicos, na medida em que os mestres só tranmitiam a arte a seus próprios parentes. Dizia-se que alguns mestres não ousavem sequer ensinar a arte às próprias filhas: quando elas se casassem, o genro poderia ser um simpatizante da família real ou alguém que o mestre não considerasse apto a aprender a arte.
Enquanto o estilo familiar (nota - ou tradicional) diminuía, o estilo de exercício (nota - ou imperial) era praticado e fomentado pelos membros da família imperial. Logo transformou-se na principal ocupação de lazere das famílias nobres e ricas em toda a China, e assim permaneceu até o fim da dinastia Ching. Exemplo de Tai Chi Imperial:
Quando a revolução de 1900-1910 finalmente derrubou os governantes corruptos, as famílias nobres, privadas de seu poder, espalharam-se pelo país. O Tai Chi, como seria de se esperar, espalhou-se junto com elas. Os praticantes reivindicavam a autenticidade de sua arte, afirmando que ela lhes fora ensinada pelos mestres da família Yang, ou de outras famílias do Tai Chi; e o público, naturalmente, aceitava essas alegações." Exemplo de Tai Chi Chuan Yang, pelo mestre Yang Jun:
Observei que, a partir de 1900 torna-se "nublada" a história do Tai Chi Chuan em consonância com a história de China, e de uma forma "misteriosa", diversas famílias tradicionais, em algum momento da história, mudam-se para o ocidente. Tendo pesquisado a história das famílias, não fica claro em que momento esta mudança acontece, porque as famílias ocupam-se das histórias pessoais de cada mestre. Pesquisando, então, sobre a história da China, observei que entre 1898 e 1901 acontece a "Revolta dos Boxers".
O texto a seguir é extraído do livro "China - uma nova história" de John King Fairbank e Merle Goldman.
"Em Shandong, a noroeste da China, na planície aluviau do rio Amarelo, a população bastante densa emprobecera de tal forma que poucas pessoas da pequena nobreza viviam nas aldeias, e o banditismo transformara-se em uma ocupação sazonal, que inspirava rixas entre elas. O governo Quing e a elite rural estavam perdendo o controle da situação. Durante a década de 1890, missionários alemães agressivos haviam atraído convertidos ao catolicismo para apoiá-los em ações judiciais contra os não-cristãos. Depois de capturar Shandong como sua esfera de influência, em 1898, a arrogância alemã aumentou o sentimento anticristão que se acumulara desde que as missões cristãs se difundiram no interior, enquanto as nações européias e o Japão humilharam repetidamente o governo chinês. As manifestações antimissionárias levaram os extrangeiros a exigir penalidades tão onerosas que os Qing pediram aos magistrados para evitar o antagonismo entre os missionários e seus convertidos. Neste contexto, os camponeses de Shandong defendiam seus interesses por meio de sociedades secretas. No sudoeste de Shandong, por exemplo, a Sociedade da Grande Espada tornou-se uma força na sopressão de bandidos.Em 1898, uma enchente desastrosa do rio Amarelo, seguida de uma seca prolongada, colocou os aldeões em uma situação terrível. O norte da China tornou-se um estopim político.
O estudo magistral de Joseph Esherick sobre a origem dos boxers aponta para a combinação, no noroeste de Shandong, de duas tradições dos camponeses - a técnica da artes marciais ou 'pugilismo' [mostrada em óperas e contos e, hoje, em filmes de combate de gongfu, e a prática da possessão do espírito ou xamanismo].(...)
Os pugilistas do Espírito, que mais tarde adotaram o nome de Pugilistas Unidos na Integridade, reuniram estes dois elementos. Após rituais apropriados, os boxers entravam em transe, espumavam pela boca e se levantavam preparados para o combate, pois agora estavam invulneráveis a espadas e balas. Qualquer pessoa poderia ficar possuída e , então, neste momento se tornaria um líder. Não era necessária qualquer organização hierárquica. O objetivo era o simples slogam: 'Apoio à disnastia Qing, destruição do extrangeiro'. Uma vez deflagrado nas circunstãcias favoráveis, o movimento dos boxers espalhou-se no norte da China como um incêndio. Os prícipes manchus e até a imperatriz regente sentiram por algum tempo que ouviam a voz do povo comum, árbitro final da política chinesa. Eles se dispuseram a cooperar com o movimento para livrarem-se do imperialismo estrangeiro.
Na sequencia dos eventos, cada lado provocava o outro. Guardas das delegações, na primavera de 1900, atiraram nos boxers para intimidá-los. Nos dias 13 e 14 de junho, os boxers invadiram Beijing e Tianjin matando cristão e saqueando. Em 10 de junho, 2100 tropas estrangeiras começaram em Tianjin a defender as delegações de Beijing, mas não foram adiante. Em 17 de junho, uma frota estrangeira atacou os fortes costeiros fora de Tiajin. Em 21 de junho, a imperatriz e o grupo dominante na corte declararam, formalmente, guerra a todas estas potências.(...)
A revolta dos boxers, no longo e quente verão de 1900, foi um dos mais conhecidos eventos do séc. XIX porque muitos diplomatas, missionários e jornalistas foram sitiados pela luta quase incessante de oito semanas (29 de junho a 14 de agosto) no local da delegação - cerca de 475 civis estrangeiros, 450 tropas de 8 nações, cerca de tres mil chineses cristãos, além de 150 pôneis de corrida que forneciam carne fresca. Um exército internacional os resgatou, não sem disputa, após rumores de que todos tinham sido mortos. A imperatriz regente e o imperador partiram para Xi'an de carroça. As forças aliadas saquearam totalmente Beijing. O kaiser Guilherme II enviou um marechal - de - campo que aterrorizou as cidades vizinhas, onde muitos milhares de chineses cristãos haviam sido assassinados; 250 estrangeiros, sobretudo missionários, foram mortos no norte da China. Havia vingança no ar.(...)
O protocolo boxer, assinado em setembro de 1901, pelo príncipe mais graduado manchu e Li Hongzhang com onze forças estrangeiras foi, em especial, punitivo: dez altos funcionários foram executados e outros cem, punidos; os exames forma suspensos em 45 cidades, a região das delegações em Beijing foi ampliada, fortificada e guarnecida, assim como a ferrovia, e uns 25 fortes Quing foram destruídos. A indenização foi cerca de 33 milhões de dólares, a serem pagos em quarenta anos, com juros que mais do que dobravam essa quantia.(...)
Afirmar, justificadamente, que a tragetória decadente dos Qing foi detida pela restauração dos anos 1860 é, sem dúvida, uma constatação de que os dias da dinastia estavam contados. A conveniência da restauração evidenciava-se na aceitação pelo regime Qing da aliança informal com britânicos e franceses depois da humilhante invasão de Beijing e do incêndio do Palácio de Verão em 1860. O longo processo de guerra e negociação, durante os anos 1850 e 1860, entre a China e as potências ocidentais fora marcado por uma presteza geral da China para lutar em defesa da lei e uma prontidão manchu para pacificar o invasor no interesse em preservar a dinastia. A pacificação obtida pelo prícipe Gong e seus seguidores, inclusive a jovem imperatriz regente, foi uma mudança muito oportuna e propiciou mais uma geração à dinastia. Ainda assim, suas implicações práticas fizeram dos Qing um parceiro menor, de certo modo, na co-dominação britânica na costa da China."
Em "História da China", compilado por Li Ming e Xu Guang;
"Yihetuan começou por ser uma organização secreta fundada por camponeses de Shandong e Zhili (Hebei) para lutar contra o poder dos Qing e que se dizia um movimento religioso. recorrendo às artes marciais e ao treino físico, organizaram as massas para a luta armada contra os reaccionários. na medida em que os imperialistas intensificavam agora a sua agressão contra a China, a luta dos Yihetuan passou então a dirigir-se contra eles. Em 1899 este movimento abandonou a clandestinidade. Os seus aderentes queimaram igrejas e expulsaram os missionários e castigaram com severidade os funcionários corruptos e os déspotas locais. Por várias vezes venceram os exércitos Qing quando estes eram enviados para lhes dar combate. A sua força estava a aumentar muito e o governo Qing enviou então Yuan Shikai para Shandong a fim de os eliminar. Em 1900, as forças principais de Yihetuan deslocaram-se para Zhili onde se juntaram aos grupos dessa região e daí marcharam para Tianjin e Beijing. No verão deste ano, vieram a conseguir o controle de Beijing, capital do país. Entretanto, o movimento já tinha se propagado para Shanxi, Henan, Mongólia Interior e nordeste da China assim como para o sul. Esta luta anti-imperialista depressa adquiriu uma dimensão de luta nacional.
Como os Yihetuan davam luta sem trégua aos 8 países imperialistas - Rússia, Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos, Japão, Itália e Áustria - estes fizeram então uma aliança para desencadear uma guerra de agressão contra a China. No dia 10 de junho de 1900, 2 mil homens das forças armadas às ordens do almirante inglês E.H. Seymour, desembarcaram em Dakukou e dirigiram-se para Tianjin e Beijing, tendo mais tarde ido para aí ainda mais tropas. O heróico Yihetuan deu imediata réplica aos invasores. Mas, atacados tanto pelos reaccionários seus compatriotas como por forças estrangeiras, os Yihetuan sofreram pesadas baixas. No dia 14 de julho, as forças aliadas ocuparam Tianjin. A 2 de agosto, uma força constituída por 20 mil homens partiu de Tianjin com o objetivo de atacar beijing, que conseguiram vir a ocupar no dia 14 deste mês. Durante 3 dias pilharam toda a cidade. Todos os tesouros, documentos e relíquias históricas que se encontravam no Palácio Imperial e no Palácio de Verão forma roubados ou destruídos. Além disso, raptaram mulheres e puseram toda a cidade a ferro e fogo.
Alarmado com o rápido crescimento do movimento da Yihetuan, o governo Qing pensou em poder vir a dominá-lo, assumindo sua chefia, aproveitando-se para issso da política anti-missionária por eles seguida e para tal começou por o legalizar. Mas quando as forças aliadas entraram em Beijing, o governo Qing, à cabeça do qual estava a imperatriz-mãe Cixi, fugiu para Xi'an e operou então um 'volte-face' na sua política, declarando que os partidários de Yihetuan eram 'bandidos'. Ale´m disso, exprimiu ainda sua amizade para com os invasores estrangeiros e pediu-lhes que dessem cabo dos 'bandidos'. Atacado tanto pelo governo Qing como pelas forças aliadas, o movimento de Yihetuan veio a sucumbir. Mas, apesar disso, ele veio a mostrar claramente a enorme força das massas camponesas (nota - e, diga-se de passagem, das 'famílias' de artes marciais) na sua luta contra o imperialismo e desferiu duros golpes na política imperialista de tentar dividir a China pelos países invasores. Lutou ainda contra o poder feudal do governo Qing e apressou a rápida queda deste regime corrupto."
Quem deseja ter uma idéia mais ampla deste período político e histórico da China, recomendo o filme de Bertolucci, o"O Último Imperador":