segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
O Clube da Luta
É um trabalho de conclusão de curso. É denso e detalhado.
Está maravilhoso, por isto pedi permissão a ela para publicar em meu blog.
Assistam o filme e leiam o trabalho devagar.
ESTA É SUA VIDA
ESTA É SUA VIDA
Você abre a porta e entra. Está dentro do seu coração.
Imagine que sua dor é uma bola de neve que vai curar você.
Isso mesmo. É a sua dor. A dor é uma bola de neve que vai curar você.
Acho que não.
Esta é sua vida.
É a última gota pra você.
Melhor do que isso não pode ficar.
Esta é sua vida.
Que acaba um minuto por vez.
Isto não é um seminário. Nem um retiro de fim de semana.
De onde você está não pode imaginar como será o fundo.
Somente após uma desgraça conseguirá despertar.
Somente depois de perder tudo, poderá fazer o que quiser.
Nada é estático. Tudo é movimento. E tudo está desmoronando.
Esta é sua vida.
Melhor do que isso não pode ficar.
Esta é sua vida.
E ela acaba um minuto por vez.
Você não é um ser bonito e admirável.
Você é igual à decadência refletida em tudo.
Todos fazendo parte da mesma podridão.
Somos o único lixo que canta e dança no mundo.
Você não é sua conta bancária. Nem as roupas que usa.
Você não é o conteúdo de sua carteira. Você não é seu câncer de intestino.
Você não é o carro que dirige. Você não é suas malditas calças.
Você precisa desistir. Você precisa saber que vai morrer um dia.
Antes disso você é um inútil.
Será que serei completo?
Será que nunca ficarei contente?
Será que não vou me libertar de suas regras rígidas?
Será que não vou me libertar de sua arte inteligente?
Será que não vou me libertar dos pecados e do perfeccionismo?
Digo: você precisa desistir.
Digo: evolua mesmo se você desmoronar por dentro.
Esta é sua vida.
Melhor do isso não pode ficar.
Esta é sua vida.
E ela acaba um minuto por vez.
Você precisa desistir.
Estou avisando que terá sua chance.
(http://geocities.yahoo.com.br/clube_da_luta/this.html)
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Antes de apresentar o trabalho, gostaria de relatar algumas considerações com relação ao diretor do "Clube da Luta". Conhecendo um pouco de sua história, tem-se a vida de um diretor que trabalhou com videoclipes antes de ingressar na carreira cinematográfica, tendo em seu currículo grandes ícones como: Madonna, Sting, The Rolling Stones, Michael Jackson, Aerosmith, George Michael, Iggy Pop, The Wallflowers e Billy Idol. Fincher também dirigiu comerciais para TV, trabalhando com produtos como a Coca-Cola, Budweiser, Heineken, Pepsi, Levi's e AT&T. "Clube da Luta" não deixa de ser um videoclipe, uma longa e profunda série de imagens.
Uma característica marcante do trabalho do diretor americano David Fincher são filmes mais densos do que o cinema americano está acostumado a produzir. Seus roteiros tratam de temas fortes com uma direção propícia para uma reflexão mais séria. Atualmente o diretor está estreando um novo filme em circuito internacional. "Panic Room" ou "O Quarto do Pânico", estrelado por Jodie Foster, conta a história de uma mulher escondida numa mansão onde está acontecendo um roubo. O suspense pretende surpreender o espectador, característica que Fincher já demostrou ser conhecedor.
David Fincher é impactante porque carrega o público para o seu universo de uma maneira muito segura - sem apelações ou clichês americanos - apresentando a sua ótica sem restrições ou meias-palavras. O filme em questão não poupa imagens fortes e por vezes, violentas. O espectador assiste o que Fincher mostra de forma objetiva, mas percebe que existe algo além disso, um sentido para tamanho videoclipe.
Alguns sites na internet especializados no filme "Clube da Luta" (http://sabotyler.vilabol.uol.com.br/tylerfiguras/david.htm) afirmam que ao assistir os filmes deste diretor ("Clube da Luta", "Alien 3" e "Seven - Sete Pecados Capitais") é como se estivéssemos "levando um soco na boca do estômago". Lembram que as pessoas, na sua maioria, preferem assistir filmes "agradáveis", "leves", "felizes". No entanto, elas não percebem que se algo as incomoda, como no caso, assistir um filme que mobiliza sentimentos tão intensos de amor ou ódio, adoração ou desgosto, atração ou repulsa, isto também deva ser pensado. Vale mencionar que a sociedade americana é muito regrada e, muitas vezes, necessita deste tipo de filme numa espécie de compensação para o que não consegue realizar. Estende-se essa idéia ao nosso país, que embora não produzindo tais filmes, assiste e faz parte do "elenco" dos estúdios ao engordar as cifras do cinema americano. Além disso, como ocorre com a cultura ocidental de forma geral, nós agregamos valores pregados pelos Estados Unidos e a identificação ocorre, mesmo que não de forma integral. Embora essa discussão seja válida, mais importante do que isto é não ater-se ao filme como uma expressão de uma realidade concreta, mas de uma realidade simbólica.
Pois o Clube da Luta é um filme que retrata as atrocidades que o homem comete diariamente, muitas vezes de forma velada ou simbólica, e que, quando mostradas na tela do cinema, acabam sendo repudiadas por um público cego às suas verdades. Porém, a expressão: "O soco vale o sofrimento" serve para aqueles que não estão satisfeitos em permanecer sem enxergar.
SINOPSE
Em "Clube da Luta", o ator Edward Norton é o narrador, um funcionário de uma companhia de seguros que sofre de insônia crônica, deprimido com a falta de perspectivas de um american dream que já não se apresenta tão sedutor. Quando seu médico ironiza suas reclamações, aconselhando-o a procurar grupos de apoio à sobreviventes de câncer para conhecer o verdadeiro sofrimento, ele segue o conselho à risca e se torna voyeur de reuniões para viciados em drogas e portadores de doenças graves. Descobre que a desgraça alheia o desafoga do stress existencial, fazendo-o relaxar e dormir. Em um desses grupos, sua satisfação secreta é quebrada ao conhecer Marla Singer (interpretada pela atriz Helena Bonham Carter), que também finge ter algum problema para freqüentar as reuniões.
Mas o grande passo do narrador acontece quando ele conhece Tyler Durden (cujo ator é Brad Pitt), um carismático vendedor de sabonetes com uma filosofia de vida diferente. Tyler acredita que a auto-ajuda é masturbação e a auto-destruição é o que realmente faz a vida valer a pena. Em pouco tempo, o narrador e Tyler estão se esmurrando violentamente em um estacionamento de um bar, um desabafo promovido através de socos numa situação completamente surreal. Fundam, então, o Clube da Luta, uma sociedade secreta onde as pessoas podem desafogar suas frustrações, lutando contra oponentes que também estão querendo se aliviar de algum peso emocional. Não importa quem vença, no final do round, os dois lados sentem que passaram por uma sessão terapêutica. Os personagens de Pitt e Norton se apaixonam pela mesma mulher (Helena Bonham Carter) e o resto, bem o resto, vou tentar compreender...
O Clube da Luta - interpretação
"Clube da Luta" é um filme de 1999 dirigido por David Fincher (o mesmo diretor de "Seven - Sete Pecados Capitais") baseado no livro homônimo de Chuck Palahnuik. Foi escolhido por possibilitar uma reflexão constante: cada vez que o assisto novos entendimentos surgem e os diálogos dos personagens, muitas vezes sarcásticos, trazem conteúdos profundos da alma humana. Relaciono muito do que vislumbrei no filme com acontecimentos diários da psique humana.
Muitas pessoas perceberam somente o lado violento do filme. Prenderam-se a esse aspecto e o consideraram um filme de "mau gosto", que incita a reprodução do vandalismo. Existe, de fato, cenas brutais. Tyler Durden pede para o narrador, quando saem de um bar, fazer-lhe um favor: bater-lhe o mais forte possível. Mais tarde cenas do Clube da Luta têm imagens chocantes, de muito sangue e pancadas violentas. O Projeto Caos, projeto criado pelos fundadores do Clube da Luta visando a destruição e/ou desorganização de uma forma de agir no mundo, e as tarefas de seus membros são atitudes questionáveis quanto à moral da nossa sociedade. Outro fator que fez com que o filme fosse mal interpretado foi o incidente ocorrido no Shopping Morumbi em São Paulo, onde um estudante de Medicina disparou sua submetralhadora na direção da platéia, durante uma exibição da fita.
Outras pessoas fixaram-se na questão da crítica ao capitalismo, ao modo de vida yuppie e às atrocidades que as grandes corporações que sustentam o sistema vigente podem causar. O narrador no início do filme chega a se dizer como um escravo das lojas de decoração, perguntando a si mesmo qual jogo de jantar o definiria. Não deixa de ser um filme sobre ideologia e crítica a respeito da sociedade moderna.
Poderia ter tido esse tipo de entendimento acerca do filme, entretanto, estou, no momento, mais inclinada a percebê-lo como um sonho, isto é, vendo-o como imagem simbólica. Assim, é através de uma análise psicológica, dos fatores psíquicos e, portanto, baseada nos conceitos de analogia e metáfora, mais relacionada ao pensamento fantasia de Jung - que assemelha-se ao devaneio, ao pensamento imagético; busco compreender o filme como um complexo de fatores subjetivos e não como um filme que mostra a história de personagens distintos e independentes uns dos outros.
Retomando a questão do consumismo, vê-se a importância que o narrador coloca nos objetos externos: móveis da S. (uma similar T. S. brasileira), camisas, ternos e gravatas de marcas famosas. Não questiono somente o capitalismo e a ânsia das pessoas em comprarem futilidades e deterem-se no consumismo. Penso também no que motiva esse movimento e, portanto, o que está por trás das compras desenfreadas do narrador por objetos caros de decoração.
O narrador era um funcionário de uma companhia de seguros, uma pessoa cansada, estressada e desiludida com a vida. De alguma forma, pode-se considerar que ele precisava desses itens para confirmar sua identidade junto aos outros. Através desses objetos sua vida tinha valor, tanto é assim que quando os perdeu, sentiu um vazio. Era possuindo bens materiais que o narrador do filme lidava com a realidade do dia-a-dia e sua vida baseava-se nisso. Uma rotina cansativa e entendiante. Faz-se necessário lembrar do que diz Jung (apud Whitmont, 2000, p.140) a respeito da persona. Diz ele que esta caracteriza-se por "expressões do impulso arquetípico para uma adaptação à realidade exterior e à coletividade". O personagem interpretado por Edward Norton buscava essa adaptação através da compensação de sua falta de segurança e valor em peças caras e artigos de luxo e o reconhecimento de suas qualidades eram, portanto, colocadas em aquisições materiais. Tyler Durden diz ao narrador que "as coisas que possui, acabam possuindo você", mostrando que o exterior quando muito exacerbado pode acabar representando aquilo que a pessoa acredita ser, diminuindo o valor de sua essência. Além disso, a mesma frase parece ter um sentido duplo, mostrando que um complexo, quando carregado de energia, toma conta da personalidade, pode se tornar um elemento autônomo e responsável por muitos dos comportamentos e atitudes daquela pessoa. Essa idéia será retomada mais adiante, quando novamente discutirei esse termo designado por Jung. De qualquer forma, nesse momento, os objetos do narrador acabam sendo mais importantes para ele do que ele próprio, assim como Tyler já está indicando a sua personalidade autônoma, "possuindo" o narrador.
O sofrimento, sentimento a priori desagradável, nos faz entrar em contato com a alma. Hillman (1993) nos lembra que através da dor psíquica pode-se chegar ao desenvolvimento da personalidade. As experiências e o sofrimento trazem consigo um significado interior e é esse que pode alavancar a consciência.
Pode-se observar o narrador "preso" aos seus objetos na cena em que perde tudo na explosão de seu apartamento (mais tarde entendida como provocada por ele próprio) e diz: "eu estava perto de ser uma pessoa realizada". É triste ver que a vida de alguém se resume a isso e para reverter, Tyler o instiga: "ir bem fundo não é um retiro de um fim-de-semana, nem um seminário", mostrando que seu papel é confrontar o narrador com a vida e desta poder tirar-lhe o melhor proveito. O narrador chega a compreender que "engole-se muito sangue antes de adoecer", mostrando que o próprio processo de "ir fundo" perpassa por situações inconvenientes e desagradáveis.
Tyler Durden, inconformado com tamanha falta de profundidade sobre o interior da alma humana ataca o narrador dizendo: "assassinato, crime, pobreza... essas coisas não me interessam. O que interessa são revistas de artistas, televisões com quinhentos canais, a marca da minha cueca. Rogaine, Viagra, Olestra. Martha Stewart (...). Dane-se seu sofá de listras verdes da S. Nunca esteja realizado. Pare com a perfeição. Eu digo: vamos evoluir. Não tente influenciar o futuro". Assim como um sonho serve para reorientar a atitude consciente do sonhador, Tyler aparece para apresentar um outro ponto de vista para o narrador. Percebo essa "aparição" de Tyler Durden na vida do narrador como sendo o elemento da vida dele que o possibilita um contato profundo com sua alma. Através de Tyler, esse processo de interiorização, esse mergulho do narrador para dentro de si é possível, só que acompanhado por muito sofrimento.
E o narrador sofre. No início do filme, sofre de insônia. Depois sofre com sua inconsciência, com seu estado de ignorância sobre a vida. É esmurrado, mostra-se prepotente e é quase "trocado" por Tyler pelo "Angel Face", um rapaz de cabelos loiros que provoca ciúmes no narrador. Esse sentimento per se já indica uma certa modificação no narrador, que não apreciando o contato de Tyler com Angel Face, consegue exprimir o que passa em seu interior. Mas essa cena é mais adiante, antes de Tyler dizer-lhe a todo momento quais questões da vida do narrador precisam ser vistas. Valores dos quais o narrador há muito deixou de lado ou nem mesmo conheceu. Logo no início, quando Tyler e o narrador estão sentados lado a lado no avião, o primeiro pergunta ao segundo: "como sua inteligência tem sido usada?", questionando a postura e atitude do narrador diante da vida.
O sofrimento que estou mencionando relaciona-se inclusive com a sombra, já que, carregada de elementos negligenciados pela própria pessoa, quando começa a aparecer tem um manejo difícil, um reconhecimento que precisa ser visto mas que por ser novo e indiferenciado, assusta. Depois de muita exposição, brigas, lutas e explosões, o narrador percebe que tudo o que aconteceu, aconteceu com ele próprio! Assim, todas essas cenas não passaram de realidades internas do narrador que, por fim, se conscientizou de que mudanças aconteceram. As explosões não ocorreram nos prédios da cidade americana. Aconteceram no próprio narrador. Whitmont (2000, p.148) associa a idéia do sofrimento, sombra e crescimento ao escrever:
"nenhum progresso nem crescimento são possíveis até que a sombra seja adequadamente confrontada - e confrontá-la significa mais do que apenas conhecê-la. Só depois de termos ficado realmente chocados ao ver como somos de verdade, em vez de nos ver como queremos ser ou pretendemos ser, é que podemos dar o primeiro passo à realidade individual".
A desilusão do narrador por sua vida ter sido desorganizada e sua notória busca por perfeição é um indício de que algo novo poderia surgir. O equilíbrio em nossas vidas é sempre almejado, mas em linguagem psicológica, o equilíbrio não significa rigidez e permanente estado estático. Estamos sempre em movimento, indo atrás de um ou vários ideais que pode ser entendido como uma busca eterna. O querer "ter tudo" do narrador é um ideal para ele e no momento em que a pessoa atinge um ideal é novamente colocada no início de uma nova inquietude. Outro ideal é posto e o ciclo da vida continua. Quando estava conseguindo tudo o que queria, o narrador passa por uma ruptura.
Ter tudo não é sinônimo de estar bem e parece-me que o narrador mostrou um processo de busca de sentir-se bem. Os grupos de apoio para viciados em drogas, alcóolicos, sobreviventes do incesto ou portadores de doenças como câncer de pele, tuberculose ou anemia retratam pessoas que não conseguiram viver seus sentimentos e os somatizaram e começaram a servir ao narrador para essa nova busca; de sentir-se vivo, pleno e capaz, mesmo que por um período relativamente pequeno. Interessante observar a existência desses grupos, uma vez que estão baseados nos sentimentos de falta das pessoas que ali se encontram, o fato de sentirem-se incompletas. Uma pessoa ajuda a outra. Paradoxal é que aquele que está sentido um "vazio", que freqüenta o local para buscar algum tipo de benefício, que em princípio nada poderia contribuir, é o agente que mobiliza e pode ajudar o outro - que sente-se exatamente da mesma forma. Ou seja, por espelhamento ou por comparação, o "outro" ainda é um ponto de apoio. Este é o princípio básico de qualquer grupo de apoio.
O Clube da Luta, outro grupo que aparece no filme, começou a ganhar força já que "depois da luta, tudo na vida parecia silencioso. Podia agüentar tudo". Os incômodos, os problemas, a insônia, tudo se resolvia no dispêndio de energia que uma luta/confrontação exigia. O narrador afirma que "na primeira vez no clube, o traseiro do cara é macio como um biscoito. Em algumas semanas, parece esculpido em madeira". A experiência da luta proporcionava um sentido na vida dos integrantes do clube, e a dureza da madeira da qual fala o narrador representa a fortaleza que se obtém do sangue, dos dentes quebrados e dos hematomas das brigas. O Clube tinha suas regras como qualquer outra organização e exigia-se, acima de tudo, o respeito para com o outro, que permitia o ataque físico. As cenas de brigas, de socos, de ataques parecem retratar a confusão interna do personagem representado por Norton. Aquele "borbulhar" de sangue e de mãos batendo fortemente para todos os lados assemelham-se aos sentimentos misturados e incompreensíveis de quando estamos nos deparando com nossa infinita forma de ser.
Pode-se perceber o filme relevando a questão da violência e do consumismo como válvula de escape mas, sobremaneira, considerando o sentido do filme através de imagens simbólicas que representam aspectos da personalidade humana, inclusive a existência dessas mesmas questões num sentido de presença de um ideal e a não adequação da espiritualidade. Tyler Durden e Marla Singer retratam complexos do narrador. São personalidades próprias que vão ganhando terreno à medida que exigem um reconhecimento por parte do narrador.
Antes disso, é necessário colocar que o personagem principal (o narrador) não é um doente, ele está dissociado e fazendo projeções maciças, o que corrobora para a evidência de um aspecto "doentio" de sua personalidade. Ele pode ter sido retratado como tal, mas o que acontece com ele no desenrolar da trama é o que acontece em nossas vidas, nas nossas relações interpessoais, numa menor intensidade. As imagens de anima, sombra e persona que aparecem no filme são, no dia-a-dia, concretizadas e personificadas nos outros, através do mecanismo da projeção. Desta forma, as nossas dissociações internas, ou seja, as nossas dificuldades em reconhecer o que nos pertence, são projetadas nos outros de forma que acaba sendo possível estabelecer uma relação. O vínculo projetivo geralmente acontece nas relações.
Portanto, visualizar esses elementos nos outros, que é de difícil reconhecimento, pode, às vezes, acabar sendo mal interpretado e julgado erroneamente, mas entendendo a dinâmica dos relacionamentos alivia compreender que é exatamente essa a relação necessária para a existência dos movimentos de atração e repulsão. Como escreve Miller (apud Zweig e Abrams, 2001, p.62) "as pessoas sobre as quais projetamos devem ter um 'gancho' no qual a projeção possa se fixar". Ou ainda, conforme Von Franz (1987, p. 23): "uma qualidade em outra pessoa só pode ser identificada se o leitor possuir a mesma qualidade e (...) se for capaz de reconhecer a mesma qualidade na outra pessoa."
O exemplo do processo psicoterapêutico é válido para essa situação. Trata-se de um meio de entender a essência da pessoa, uma vez que o paciente retrata seu mundo interno a partir das ligações afetivas com outrem. O narrador do filme contata com Marla e Tyler e pode ser entendido como aspectos dele a serem olhados. Na prática clínica, o paciente ao comentar sobre suas relações está falando dele próprio. Os "outros" (pessoas externas, alheias ao terapeuta ou o próprio terapeuta) são uma representação dos "outros" conteúdos contidos no próprio sujeito. Assim, ao falar de pessoas na terapia, o paciente está falando de representações dessas pessoas, de imagens que ele faz dessas pessoas e não a pessoa real. Por isso ele está demostrando questões importantes de sua própria personalidade; ou ainda, conforme Sanford (1986, p.76) na sua descrição do processo de escolhas amorosas "(...) o parceiro representa algo que necessitamos entender a respeito de nós mesmos".
Atentar às nossas paixões, encantos, interesses, repulsas, raiva e outros sentimentos direcionados à alguém bem como vislumbrar as nossas limitações, nossos erros e nossas dificuldades nos dá a chance de nos desenvolvermos, de passarmos pelo processo de individuação - que não ocorre sem "suicídios", isto é, sem abrir mão de muitas certezas que vamos construindo durante a evolução de nossas vidas. Com o próprio narrador, essas mortes - perder a casa, o lar, o local de pertença; sofrer uma queimadura nas mãos; apanhar bastante vão aparecendo concomitante com muito sofrimento.
Von Franz (1987) nos lembra que muitas pessoas têm dificuldades para compreender o que Jung coloca sobre a intranqüilidade que a projeção provoca. A autora explica que só podemos falar de projeção quando já existe um desconforto, quando a identidade de sentimento é perturbada; "ou seja, quando tenho um sentimento de intranqüilidade e de constrangimento sobre o que foi dito a respeito de x é verdadeiro ou não" (p.23). Desta forma, pode-se considerar que os outros (personagens, prédios, construções) que precisam ser atacados pelo "narrador-Tyler" são representações projetadas desse íntimo conturbado.
Faz-se então, necessário, voltar ao início do filme. O espetáculo de demolição, a arma na boca do narrador, a explicação de que as armas, as bombas e a revolução tinham a ver com Marla e a fala de que "quem ama bate e vice-versa" pareciam não fazer sentido naquele momento. E quanto maior o suspense, maior o interesse e Hollywood sabe disso. Então, quando a maioria do público pensa estar diante de um filme que parece ser sobre bombas e brigas de grupos organizados, o próprio narrador decide fazer uma recapitulação de sua vida e é neste momento que algumas pessoas percebem o filme de formas distintas, alguns considerando-o não apenas um filme de ação, mas percebendo-o como um filme que retrata o nosso cotidiano e a forma de encarar a vida.
O personagem principal começa apresentando sinais de desconforto. Sua insônia o atrapalha de forma geral, sua vida parece não fazer mais sentido como na sua fala "tudo é uma cópia, de uma cópia de uma cópia". Sua aparência denota cansaço e insatisfação. Não suportando mais ficar tanto tempo sem dormir (6 meses) ele busca ajuda. O sofrimento causado pela falta de repouso o coloca frente a um médico que mostra-lhe o que, para a subjetividade dele, é sofrimento: os homens com câncer de testículo que se reúnem semanalmente na Igreja Metodista. Essa idéia do que é sofrimento para o médico suscita a questão do que significa câncer de testículo, que remete a uma representação da falta de masculinidade e sua conseqüente indiferenciação, que para a nossa cultura, é vista como um imenso fardo e fonte de preocupação exacerbada.
Neste momento do filme aparece em uma fração de segundos a imagem de Tyler Durden, já denotando que o personagem interpretado por Edward Norton está sendo "invadido" por sua sombra. A sombra é definida por Whitmont (2000, p.146) como características pessoais que repousam em impulsos e padrões de comportamento, os quais são uma parte "escura" definida da estrutura da personalidade. O autor ressalta que a sombra engloba os elementos da personalidade que são reprimidos em benefício de um ego ideal e por ser inconsciente acaba sendo projetado. De alguma forma, a sombra está aparecendo, o lado escuro e diferente do narrador começou a transparecer. Em menos de 12 minutos de filme, Tyler aparece três vezes em frações de segundos para o narrador (e para o espectador mais atento).
Sanford (apud Zweig e Abrams, 2001) explica que nos casos de personalidade múltipla, como no filme, as características e qualidades são seccionadas e isoladas em demasia formando a personalidade secundária que consiste na sombra. Entretanto, a sombra nem sempre é má, mas apenas diferente do ego. E o ego, "com sua recusa de introvisão e com sua recusa de aceitar o todo da personalidade, contribui muito mais para o mal do que a própria sombra" (p.44).
A freqüência do narrador nos grupos de apoio possibilita que ele relaxe por um período determinado, conseguindo dormir e encontrando liberdade... até que... aparece Marla. "Ela arruinou tudo. Sua mentira refletia a minha e passei a não sentir mais nada". As palavras de Sanford (1986, p.69) explicam um pouco melhor essa fala do personagem: "a mulher recebe (...) a projeção da bruxa interior do homem e, por conseguinte, fica sendo responsável pelo mau humor dele (...)". A responsabilidade pelo término da sensação de bem-estar que ele acreditava estar sentindo nos grupos de apoio acaba sendo projetada em MarlaJung (1998, p.12, § 17) explica que o motivo da mulher desconhecida representa uma figura de caráter contraditório. Diz o autor que essa descreve muito mais uma criatura fabulosa, "capaz também de se transformar em animais (...) ora são jovens, ora idosas (...) sedutoras, perigosas, e são dotadas de um conhecimento superior". Continua o autor definindo:
"assim como a água significa o inconsciente em geral, a figura da mulher desconhecida é a personificação do inconsciente que denomino anima. Em princípio essa figura só se encontra nos homens, e só se manifesta com nitidez quando as características do inconsciente começam a tornar-se problemáticas para o paciente".
Essa figura feminina com um tipo bizarro o perturbou, o instigou. Marla, uma mulher excêntrica, de cabelos desajeitados e fisionomia "noturna", com falas e atitudes engraçadas denotam um feminino primitivo, ou melhor, em "construção". Jung (1995) explica que quando existe a repressão ou a permanente inconsciência acerca de elementos da personalidade, estes persistem numa forma primitiva, não diferenciada que, quando se manifestam para o exterior, são inadequados.
Portanto, Marla Singer está representando a anima do narrador, importunando-lhe e demostrando que as características de acolhimento, de espontaneidade e de conexão estavam fora de seu contato pessoal, mas buscando entrar em cena. Ela agia como ele, ela era parte dele. De tão dissociado e inconsciente acerca de sua vida interior, o narrador começou a percebê-los em Tyler e Marla. "Às vezes, Tyler falava por mim" menciona o narrador, enquanto o que se pode concluir é que, de fato, Tyler assim fazia. Como a anima foi projetada, fica difícil reconhecê-la como parte do narrador, porque ela parece estar fora dele. À medida em que as projeções vão diminuindo, o auto-conhecimento torna-se possível, nas palavras de Sanford (1986). Entretanto, vale lembrar que tais fatores psíquicos nunca podem tronar-se totalmente conscientes a ponto de não haver mais projeção.
Sendo anima, importante considerar que ela é um arquétipo, existente na estrutura psíquica de todo o homem, e como tal, possui complexos formados ao seu redor. Whitmont (2000) explica que esses complexos que estão em torno do núcleo da anima dirigem as reações do homem às situações emocionais e a determinadas mulheres, "e também modelam suas expectativas inconscientes em relação ao modo como essas mulheres se comportarão" (p.170). O narrador passa a idéia de não suportar as atitudes de Marla, seja quando ela, no início do filme, vai aos mesmos encontros que ele (o desafiando) e vende roupa alheia para conseguir dinheiro, seja quando ela se relaciona sexualmente com Tyler, ou ainda, quando lhe conta ao telefone que está tomando medicamentos em casa. O narrador, em nenhum momento, sente-se feliz com a presença de Marla, pelo contrário, ela parece ser um estorvo.
Emoções e afetos quando estão em ação são indícios da manifestação da anima. Assim, quando o homem está possuído por sua anima, ele passa a ter tristeza, mau humor, estando extremamente sensível e preocupado. Sanford (1986) menciona que existem casos em que as más disposições tornam-se crônicas, levando o indivíduo ao alcoolismo e à profunda depressão. Sobre o narrador, sua indisposição é evidente e sua permanente irritação e descontentamento manifestam-se desde o início do filme. O estado de apatia em que o personagem aparenta no trabalho, mais tarde nos grupos de apoio e também em alguns momentos com Tyler em sua casa está contido nessa vulnerabilidade que a anima acaba proporcionando. Assim, o narrador parece não ter paciência nem sentimentos agradáveis de prazer e satisfação. O uso de bebidas não é ressaltado no Clube da Luta, mas há uma cena em que Tyler e o narrador resolvem beber e caracterizam essa indisposição.
Marla o persegue, vai nos mesmos lugares que ele e ele se impressiona com a personagem feminina. Questiona a sua existência, faz um acordo com ela para que cada um participe de grupos de apoio diferentes, mas nada finda esse relacionamento. Eles não se separam, pelo contrário, ao invés de cada um ir para um lado, eles ficam cada vez mais próximos. Aliás, quem contribui para que esse relacionamento aconteça é Tyler. Ele a procura, ele a escuta e transa com ela. Pode-se concluir que os complexos que estão no inconsciente e são personificados por Tyler estão mais "energizados" do que o ego, personificado pelo narrador, e a anima acaba ligando-se à sombra dissociada, caracterizando a anima negativa.
Um complexo é um grupo de idéias ou imagens carregadas emocionalmente e Whitmont (2000) ressalta que esse elemento da psique pode ser caracterizado como destruidor quando expresso através da identidade, compulsão e primitividade, além da inflação e projeção. Essas características são retratadas na figura de Tyler. Dessa forma, pode-se concluir que o desenvolvimento do ego, que depende de uma separação entre um centro do consciente e o mundo dos impulsos, permanece estanque na personalidade do narrador, que necessita sair desse estado de identidade.
Com relação à anima, pode-se considerar que ela é o elo de ligação entre Tyler e o narrador, e por isso, a dificuldade em separar anima, sombra e ego. Tyler e o narrador se conhecem sem a presença de Marla e talvez nem por sua influência direta. Mas o trio passa a se conhecer e a se relacionar constantemente, assim como os elementos da psique estão interligados e não podem ser nitidamente delimitados.
No início do filme, o narrador diz: "e, de repente, entendi que tudo isso, a arma, as bombas, a revolução tinha a ver com uma garota chamada Marla Singer". Isso quer dizer que todo o movimento do personagem, as falas como: "entrar na caverna", "ir bem fundo", "ver coisas diferentes", "estar iluminado", só foram possíveis porque existia uma função (anima) que é a responsável pelas trocas do inconsciente com o consciente.
Jung (1995) afirma que a anima "é qualificada de mensageira entre o inconsciente e a consciência" (p.68) e que
"o desejo de novos empreendimentos torna-se perceptível primeiro no feminino-inconsciente. Antes de chegar claramente à consciência, o desejo de algo novo, de outra coisa, manifesta-se em geral na forma de um movimento da alma, como emoção abafada e uma disposição inexplicável. Quando estas (...) ganham expressão através de um ser feminino, isso quer dizer que os movimentos emocionais que ocorrem no inconsciente são transmitidos à consciência pela feminilidade do homem, pela anima, que as percebe" (p.64).
Ou seja, através do componente feminino da personalidade do narrador que o processo de mudança pode vir a acontecer.
Importante rememorar que o narrador passa a não sentir-se mais reconfortado nos grupos de apoio quando a companheira dele aparece. É nesse contato com Marla que ele sente-se desconfortável e sonolento e é nesse mesmo momento com ela e com um profundo estado de irritação que o narrador encontra Tyler Durden. O Clube da Luta começou a existir quando o narrador deixou para trás os grupos e passou a sentir prazer nas brigas. Isto é, quando o narrador começou a sentir que precisava mudar e que algumas atitudes precisavam ser revistas sendo possível pelo novo sentido mostrado por Tyler. Começam a aparecer sentimentos de inquietação, de revolta, de indignação. A energia que outrora estava estagnada começa a fluir, acompanhada pela observação permanente de Marla.
Além disso, Marla começou a estar sempre presente na vida do narrador. O diretor do filme, David Fincher, teve o cuidado de em nenhuma cena colocar Pitt, Norton e Carter (Tyler, narrador e Marla, respectivamente) juntos, para que o espectador comum aceitasse o fato das cenas dela com eles e racionalmente ser possível que eles (Tyler e narrador) fossem um só. Sabe-se que os elementos da psique não agem dessa forma, penetrando um na área do outro, sendo sua classificação apenas didática. Marla quando não estava com um, estava com outro. Isto é, estava contatando com o narrador o tempo inteiro, ora com a sombra, ora com um ego frágil e personificado.
Lembro-me do grupo de encontro em que o narrador é instruído a encontrar seu poder animal na caverna. Num primeiro momento ele visualiza um ambiente gelado, úmido e frio assemelhado com a Antártida e se depara com um pingüim. Uma ave marinha que não voa e que pode viver em ambientes de baixas temperaturas por possuir espessa camada de gordura protetora em seus corpos. A questão da gordura será retomada mais adiante, sendo nesse momento apenas importante mencioná-la. Nesse contexto, pode-se pensar que o narrador estava repleto de sentimentos semelhantes ao ambiente focalizado e usando defesas consigo e perante os demais assim como um pingüim protege-se do frio através de seu corpo impermeável. O fato do animal não voar, embora possuindo asas, remete à uma posição de firmeza ou rigidez à qual o narrador estava vivenciando naquele momento. Estava "preso" em si próprio.
Depois esse pingüim é trocado por Marla na imaginação do narrador. Essa imagem da caverna do narrador é o que ele encontra em si, é isso que ele vislumbra, o que está no seu interno. É a própria representação de sua condição naquele momento. Seu interior está repleto de gelo, de sentimentos frios. Marla depois já denota uma condição de mudança, uma vez que a mulher no homem (a anima) representa o par de opostos que possibilita a transformação. O fato da imagem do pingüim ser trocada pela de uma mulher pode ser entendido de forma análoga a que Jung (1995, p.69) fez a um conto sobre a salvação de um cisne. Diz a autora: "por trás da forma animal, oculta-se portanto um ser superior que vale a pena salvar e que, no fim, se une ao herói". E vale referir o que Sanford (1986, p. 97) coloca a respeito da anima: "(...) serve para afastar um homem de um caminho que é falso para ele e prejudicial aos seus valores mais elevados, para trazê-lo de volta ao caminho da plenitude e desenvolvimento espiritual." Não é a toa que o desfecho acontece com um encontro entre os dois.
Algumas imagens do filme fizeram com que eu me remetesse à Alquimia e fosse procurar na Pedra Filosofal o sentido de tais acontecimentos. O filme, portanto, possibilitou uma modesta integração com a arte hermética incitando minha curiosidade por tal assunto. As palavras de Von Franz (1987) podem até assustar, num primeiro momento, mas ajudaram a me preparar com a complexidade da também conhecida Medicina Universal. Diz a autora (p.3): "a alquimia, em si mesma, é tremendamente obscura e complexa, e os textos muito difíceis de ler, de modo que, se o leitor desejar penetrar nesse campo, terá necessidade de uma imensa bagagem técnica de conhecimentos".
Para iniciar essa integração faz-se necessário uma breve introdução a respeito da alquimia. A palavra alquimia, do árabe, al-khimia, tem o mesmo significado de química, só que esta química, antigamente designada por espagíria, não é a que atualmente conhecemos, mas sim, uma química transcendental e espiritualista. Sabe-se, que al, em árabe, designa Ser Supremo, o Todo-Poderoso, como Al-lah. O termo alquimia, designa desde os tempos mais recuados, a ciência de Deus, ou seja a química de Al.
A alquimia, como sendo a arte de trabalhar e aperfeiçoar os corpos com a ajuda da natureza tem, conforme Sasportas e Greene (s.d.), alguma verdade psicológica encapsulada em seu interior. Esses autores ressaltam que
"ele (Jung) aplicou à alquimia o mesmo tipo de perspectiva que usou para o simbolismo dos mitos e dos contos de fadas - em outras palavras, as imagens da alquimia representam um mapa do desenvolvimento psicológico e, em particular, um mapa da dinâmica do inconsciente desdobrando seu processo, ao qual Jung denominou processo de individuação" (p.193).
Busco compreender uma imagem impactante do filme, a cicatriz provocada por lixívia que Tyler faz questão de marcar no narrador. Tyler, preparando o narrador para receber essa marca, explica que os antigos perceberam que suas roupas ficavam mais limpas nos rios e que a lixívia era criada pela água filtrada das cinzas dos corpos queimados em sacrifícios realizados nesses rios. Assim, "misturada com a gordura derretida dos corpos soltava nos rios um líquido saponáceo" e o "sabão era feito de cinzas dos heróis como os macacos lançados no espaço". Tyler lhe diz para enfrentar a dor, a dor provocada durante o processo de queima da pele do narrador, como um simbolismo da transição pelo qual ele está passando. Von Franz (1987) rememora que as substâncias ácidas são perigosas, mas por serem corrosivas e capazes de dissolver coisas, ganham importância em operações químicas, já que transformam uma estrutura em outra, destruindo a substância inicial.
"(...) a projeção era que o ácido era uma substância perigosa que dissolve, mas que também possibilita a manipulação de certas substâncias. Ou então, é um veículo de transformação - permite abrir (...) um metal com o qual nada pode ser feito e torná-lo acessível à transformação mediante o uso de certos líquidos". Parece-me que essa cicatriz tem, portanto, o simbolismo de mostrar a transformação de uma estrutura rígida e, a princípio, estruturada pela qual o narrador enfrentará e que, sem o sofrimento inicial, nada será possível.
Sabe-se que a "queima" (ou calcinatio, em linguagem alquímica) é o primeiro passo num processo de mudança. Esse estágio implica "a frustração do desejo até que as emoções se exauram por si mesmas e (...) chegando à sua essência" (Sasportas e Greene, s.d, p.207). Esses autores lembram que os animais ligados à calcinatio estão relacionados com as paixões, a fome, o orgulho, a arrogância e o desejo. Tyler Durden nada mais quer do que fazer ou mostrar para o narrador que ele deve chegar à sua essência e que, mesmo com alguns percalços, ele tem condições e deve fazer esse processo. Os mesmo autores ressaltam que os alquimistas viam sua opus como um processo inevitavelmente assolado pelo sofrimento. Ela não era considerada como um lazer e que "somente um considerável grau de integridade, de honestidade e de decência moral podia ajudar o indivíduo a cruzar o labirinto de confusão e de perigo que acompanhava todos os estágios do trabalho" (p.200).
Tyler diz ao narrador enquanto o "fere": "nada teríamos sem dor e sacrifício. Não ignore a dor. Você está jogando fora os momentos mais importantes de sua vida". Geralmente, o que acontece é que as pessoas tentam se desfazer da dor e do sofrimento, mas a dor, assim como todos os outros sentimentos, existe para ser sentida. Ultrapassando momentos difíceis, no qual a alma é experimentada, é como se o ser humano fosse acumulando energia para suportar momentos de equivalente intensidade. Por isso é de extrema importância que o sofrimento seja vivido e reelaborado. Tyler exprime que está em busca de um sentido ao afirmar que "não temos a Grande Guerra nem a Grande Depressão. Nossa grande guerra é a espiritual. Nossa grande depressão são as nossas vidas".
O narrador passa a ser outra pessoa - mais forte, mais bravo, mais "dono-de-si" após todo o sofrimento causado pela ferida marcada em sua mão. Assim como uma tatuagem, em sua essência, tem o propósito de definir uma pessoa, sendo um símbolo da identidade da pessoa tatuada, a cicatriz na mão do narrador passa a representar um marco diferencial da personalidade do narrador a partir desse momento.
Petrinus (2002) explica um pouco sobre a identidade do alquimista. Diz ele que um alquimista era também, normalmente, um médico, filósofo e astrólogo, tal como Paracelso, Alberto Magno, Santo Agostinho, Frei Basílio Valentim e tantos outros grandes mestres hoje conhecidos pelas suas obras reputadas de verdadeiras. Cada mestre tinha os seus discípulos a quem iniciava na Arte, transmitindo-lhe os seus conhecimentos. Além disso, para que esse conhecimento perdurasse pelos tempos, transmitiram-no também por escrito, nos livros que atualmente conhecemos, quase sempre escritos sob pseudônimo, de forma velada, por meio de alegorias, símbolos ou figuras.
Além de, no Clube da Luta, Tyler transmitir sua filosofia de vida, ele possui seus códigos representados nas regras do Clube da Luta, extremamente importantes para a manutenção e sobrevivência do Clube. Percebo Tyler Durden como um alquimista que faz sabonetes com gordura humana. Novamente, a gordura é um elemento ressaltado no filme, tendo aparecido também no início da fita, quando o narrador está fazendo uma inspeção num automóvel batido e há gordura em todo o interior do veículo.
Quanto ao alquimista, seu ouro é a gordura, mas não qualquer gordura; ele utiliza aquela que vem do próprio ser humano. O narrador comenta: "era lindo vender às mulheres a gordura de suas bundas!" ironizando o fato de devolver-lhes o que, noutro momento, fora posto fora. O sabão feito por Tyler, que é destacável pela sua qualidade, demonstra o aproveitamento daquilo que não é bem visto ao senso comum. Tyler utiliza algo sem valor, vindo do lixo, em princípio algo impróprio e o transforma em artigo de luxo àquelas pessoas que desprezam esse material. A cena dos dois personagens indo em busca da gordura numa clínica de lipoaspiração mostra o aspecto desagradável da gordura e da forma como eles obtém esse elemento ao mesmo tempo que retrata a gordura como matéria prima para o sabonete refinado e portanto, fundamental.
Na verdade, a principal matéria a se transmutar é o próprio alquimista. No site http://pegue.com/religiao/alquimia.htm pode-se entender o que significa essa afirmação. No texto retirado da internet, afirma-se que à medida que se sucedem as etapas que conduzirão o adepto à Pedra Filosofal, o próprio é transformado em sua essência, atingindo um nível de consciência diferente dos demais humanos. Tyler é diferente dos demais, ora parecendo cruel, ora sendo extremamente preocupado com as causas humanas e com o rumo que a humanidade tem tomado a partir de uma não-conscientização de seus atos. Refiro-me aqui a uma cena em que Tyler ameaça Raymond (um funcionário de uma loja de conveniência) de morte. Tyler depois explica sua atitude ao narrador: "após esse incidente, o dia de amanhã será o dia mais lindo na vida de Raymond. Seu café da manhã terá um gosto especial". Essa auto-transformação é que seria o verdadeiro "elixir da vida eterna", pois ao atingir tal estágio o adepto se liberta das exigências da carne.
As palavras de Sasportas e Greene (s.d, p.194) remetem a outra questão, a própria imagem de Tyler. Escrevem os autores: "o alquimista se via como um transformador do caos natural, um indivíduo que se introduzia e interferia com a criação nobre, contudo imperfeita, de Deus, no intuito de melhorar o derradeiro padrão evolutivo". Tyler é o artifex (alquimista) do Clube da Luta; metaforicamente o que são os psicoterapeutas; que devem, conforme Jung (1991), contar com a inteligência para a execução de uma obra tão difícil e de um poder mágico capaz de transformar a própria matéria.
Oliveira (2001) ressalta outras características necessárias do alquimista tais como seriedade, virtude, persistência, coragem e cuidado com muitos desvios que o próprio Mercúrio causaria (espírito vivo que eles tentavam apreender da matéria). Ela escreve ainda que um dos perigos alertados pelos alquimistas era a inflação: "(...) efeito do ego identificar-se com um conteúdo arquetípico, acreditando que provém de si a energia desse conteúdo, e dessa forma correndo o risco de ser arrasado no momento em que essa energia se deslocar" (p.10). Tyler e o narrador parecem demostrar essa situação durante grande parte do filme, uma vez que o personagem de Norton não reconhece Tyler como parte integrante de sua psique, e acaba identificando-se com ele. Fica claro essa situação de inflação no momento em que o narrador recorda cenas no final do filme em que ele próprio se vê nas situações onde anteriormente ele via Tyler. Também no momento em que Tyler "foge" e o narrador vai de um lugar a outro atrás dele e conversa com o barman descobre que Tyler é ele. As falas retratam esse aspecto:
- (barman): Como está senhor?
- (narrador): Você me conhece?
- (barman): É um teste, senhor? Esteve aqui na quinta-feira. Estava falando sobre segurança.
- (narrador): Quem você acha que eu sou?
- (barman): Você é o Senhor Durden. Foi quem me deu isso (mostra a marca de queimadura na mão).
Desmancha-se nesse momento a inflação do ego e reconhece-se, num estágio inicial, a psique do narrador. Tyler estava identificado com o narrador e somente após ter sido reconhecida como tal é que o narrador começa a conscientização do seu processo. O narrador telefona para Marla para saber se eles já transaram. A resposta de Marla faz sentido para suas próprias condutas: ora próxima do narrador, ora distante e além disso, responsável pelos seus humores. Ela diz: "transa comigo, depois me ignora. Me ama e me odeia. É sensível e, depois, um total idiota. Nisso se resume nossa relação, Tyler".
Sensações intensas passam pela cabeça do narrador nas cenas finais do "Clube da Luta" quando ele encontra-se com Tyler num quarto de hotel após esse diálogo com o barman. Nesse momento em que ele adquire a certeza de que Tyler faz parte de si, da qual Tyler faz questão de ironizar dizendo que o narrador queria mudar de vida mas "não podia fazê-lo sozinho. Tudo o que desejou ser...eu sou. Pareço como quer parecer. Transo como quer transar. Sou esperto e, mais importante, sou livre, o que você não é. Luta para se transformar, por isso ainda é você", a confusão e o estado de perplexidade abatem o personagem de Edward Norton. É difícil reconhecer o nosso "outro lado". O narrador já tinha tido indícios dessa "realidade", como quando, por exemplo, na cena da briga no escritório do seu chefe, ele lembrou-se da primeira luta com Tyler.Tyler demonstrou não apenas ser "destruidor" mas também uma competência extraordinária, um lado de bastante bravura e coragem que bem direcionada serve para expressar as tendências da pessoa dentro de um contexto construtivo. É exatamente esse sentido da sombra na psique que a faz um tesouro. Rohn (apud Zweig e Abrams, 2001, p.16) menciona que "a sombra mantém contato com as profundezas perdidas da alma, com a vida e a vitalidade - o superior, o universalmente humano; mesmo o criativo podem ser percebidos ali". Tyler Durden mostra que realiza suas metas, que dá-se conta da mediocridade pela qual a sociedade está passando e utiliza seu potencial sedutor. Tyler é um lado que o narrador sofreu para ver.
Não posso desconsiderar nesse contexto que semelhante é o que acontece no encontro analítico, onde os sistemas psíquicos do terapeuta e do paciente se relacionam, e no qual as feridas de cada um estão expostas em busca de uma "cura". Assim, no processo de psicoterapia não se desconsidera as dificuldades, inclusive do terapeuta, atentando para seus pontos cegos em prol de uma relação mais humana possível. Jung (1998, p.78, §185) explica que "o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade, mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento". Desta forma, a Psicologia Analítica me remete à força e à grandeza desse filme, que mostra as desgraças, os problemas, o caos, as lutas, a confusão e não desqualifica os mesmos. Pelo contrário, vê nestes a possibilidade de um crescimento real. Assim, importante lembrar de que quem sofre é o ego para um desenvolvimento do self.